Praticamente dez anos depois de chegar para viver nessa cidade que eu insisto em chamar de lar, ontem eu provei esse prato típico pela primeira vez. E resolvi dedicar algumas linhas a esse complexo e controverso prato. Mas antes de começar, vale o aviso: minha mãe me ensinou que a gente não odeia comida, não fala “eca!” pra comida, não desrespeita comida, então não vá esperando aqui o ódio instagrâmico que o prato comumente recebe dos jovens.
Primeiro vamos tirar da frente o menos importante, o gosto: é bom? Não. É ruim? Não. E isso tem tudo a ver com o que realmente me interessa e me fascina no cuscuz paulista, que é ser inegavelmente paulista.
Esse prato é um caos.
Vamos aos equívocos, que são muitos. A começar pelo mais básico e estrutural de todos: estamos falando de um prato de farinha molhada. Qualquer especialista em cozinha brasileira, amador ou profissional, sabe que o nosso prato típico e basal é a farofa. E a farofa, como qualquer criança que já falou farofa com a boca cheia de farofa sabe, é seca. Só mesmo um prato paulista pensaria na disrupção de molhar farofa. Então a primeira bocada em um prato que parece farofa, tem ingredientes de farofa, textura de farofa mas está frio e molhado é o equivalente culinário de pisar em falso. Dá uma abalada no equilíbrio. E aí vem o segundo ponto que é: sim, ele é frio. Por que ele é frio? Pelo mesmo motivo que em São Paulo se come feijoada às quartas e não às sextas. Que se coloca purê de batata numa receita de sanduíche. Que não se coloca queijo numa receita de pizza. Porque é intrinsecamente paulista não estar nem aí pras suas expectativas.
Para terminar a série de equívocos dessa receita, vem a pungência dos ingredientes. É muita coisa forte demais e presente demais junta. Ovo, sardinha, azeitona, tudo ao mesmo tempo. Não existe balanceamento, poderia ser considerado umami se o conceito de umami tivesse sido inventado por José Luiz Datena.
Mas aí, enquanto você está atacando seu tijolinho de cuscuz, é que vêm à mente os acertos do prato (sim, note que os acertos do prato vêm à mente e não à boca). Essa é uma receita que cumpre o único requisito necessário para que uma receita possa ser levada a sério: isso é comida de gente trabalhadora. Não só isso, o cuscuz paulista não é gregário somente por ser um amontoado de enlatados prensados em farinha molhada. Ele claramente não é comida de comer sozinho vendo televisão. É comida de comer na casa da mãe, na festa junina, no encontro com gente mais velha que quer saber de você e tem história pra contar. É receita capaz de gerar o tão inútil quanto delicioso debate culinário “mas bom mesmo é o da [insira aqui bairro distante, cidade do interior, parente que já faleceu], que no lugar da sardinha coloca [insira qualquer ingrediente mais sensato que sardinha]”. Mesmo se você não gostar de cuscuz paulista, você tem que gostar do cuscuz paulista, se tiver caráter.
Ironia das ironias, cuscuz paulista é uma receita que merecia uma música escrita pelo carioquíssimo Tim Maia, que tanto cantou alimentos. Sua originalidade desengonçada, sua riqueza marginal, sua mistureba caótica é coisa nossa demais. No final das contas não existe gostar ou não de cuscuz paulista, com o cuscuz paulista se convive de um jeito bem brasileiro: abraça chamando de filho da puta.
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